Il magnifico corteo sulle macerie de Francisco de Almeida Dias oferece-nos uma leitura da obra poética de José Tolentino Mendonça. O autor explica imediatamente o significado da obra:
A reflexão sobre a vida e sobre a obra de Tolentino tornaram evidente que, para além de ser um devedor confesso da lição pasoliniana, ele mesmo se tornou, ao longo dos anos, num verdadeiro divulgador da figura e da obra de Pier Pasolini em Portugal – até sob pseudónimo! Tolentino é, na verdade, o Francisco que assina a introdução da mais recente edição portuguesa dos pasolinianos “Escritos corsários, cartas luteranas” (Assírio & Alvim, 2006). Nesta viagem ao universo paso-tolentiniano um terceiro nome aflorava, como se se quisesse introduzir na leitura, como se fosse necessária para a definição da personalidade artística e da humanidade poética de Tolentino, cuja definição de “pasoliniana” tout court teria uma forte assonância epígona. A terceira figura de dimensão universal, que parecia mediar as linhas de força comuns entre as obras dos dois poetas, era claramente a de São Paulo. A mensagem paulina encontrava perfeita aderência tanto na vida, quanto na ideologia e na obra de Pasolini, assim como nas de Tolentino e, de repente, toda o trabalho parecia sintetizar-se naquele versículo da Carta aos Romanos: “Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente” (Rom 12, 2).
Este é o ponto mais relevante para o pensamento religioso, para a espiritualidade individual e sobretudo para toda a eclesiologia. A grande provocação pasoliniana, como veremos, nunca poderá ser totalmente acolhida no interior de uma qualquer Igreja, mas, no fundo, nenhuma Igreja pode evitar confrontar-se com ela. “Não vos conformeis…” – este é o desafio paulino que Pasolini traduz entre palavra escrita, que necessariamente requer conformidade, e palavra oral, que, enquanto tal, nunca se conforma. Ora, sendo Tolentino Mendonça um cardeal da Igreja Católica Romana, é evidente que o livro contem um valor eclesial e espiritual enorme. Não pode ser culto conformando-se, mas renovando-se. Eis o grande desafio que divide, não diversas culturas, mas o interior de cada cultura. E isto deve reconhecer-se, antes de mais, ao génio de Pasolini e à coragem indiscutível de quem o estuda.

Então que tipo de livro é um livro como este? Um livro sobre Tolentino Mendonça? Ou um livro sobre Pasolini? Será evidentemente um livro sobre ambos? Isto é, um livro sobre como o mais provocador entre os católicos é entendido, vivido, amado, interpretado, por um (então) padre (hoje cardeal)? Fascinante…
Há muitas páginas surpreendentes neste livro, como é lógico que aconteça, visto que se fala de um grande visionário capaz de superar a posteridade de algumas décadas, pelo menos, tal como Pier Paolo Pasolini e, com ele, o seu estudioso e cultor apaixonado, o cardeal português. Entre todas estas páginas surpreendentes, gostaria de pôr em evidência apenas uma que todos podemos entender, ou tentar compreender.

O volume debruça-se longamente sobre a obra de Pasolini que deveria ter-se tornado um filme sobre São Paulo, figura que atrai o seu interesse, fascinando-o enormemente. São Paulo torna-se um grande, a meio termo entre a dimensão de Santo, a preferida de Pasolini, e a dimensão de padre, por ele temida; isto é, São Paulo é cisão e encontro de palavra oral e escrita, de espiritualidade e instituição. Pasolini temia, acima de qualquer outra coisa, o conformismo e, portante, sabia que também o anticonformismo podia tornar-se conformista. Daqui o seu temor pela instituição, o “padre”, a palavra escrita, e a sua paixão pela espiritualidade sempre nova, o “santo”, a palavra oral, ancorada no contexto, no momento. O seu filme sobre Paulo deveria ter trazido o apóstolo dos gentios para as cidades do novo mundo, até Nova Iorque. Reconstruindo esta passagem completamente paulina de Pasolini, o livro reflete sobre tantas páginas decisivas, fulgurantes.
Aquela que sublinho é central na paixão pasoliniana por Paulo, pela linguagem eterna e concreta, portanto pelo “trasumanar e organizar”. Como é que se pode “trans-humanizar” e organizar? Na nossa linguagem, como organizar uma lógica “não mundana”? É este o elemento de atração para Paulo, o apóstolo dos gentios, que tornou decisiva a fé, possível a todos. A mudança de rota está aqui, na decisão de Paulo de pregar aos gentios. E tal não poderia escapar, na seu caráter revolucionário, a Pasolini. Daqui a página que gostaria de apresentar, a única página deste trabalho importantíssimo: assinalada pelo dia em que Paulo VI usou o cocar indígena dos índios.
Este detalhe, hoje, poderá dizer pouco a um leitor desatento, mas também o Papa Francisco, ao começar o sínodo pela Amazónia, o fez. Pôs na cabeça o chapéu de penas coloridas, como fizera Paulo VI, mas o gesto do atual papa não foi saudado com a simpatia formal com que foi o de Paulo VI. Não; houve um “cair do Carmo e da Trindade”, a criticar Bergoglio saíram os famosos cardinalões. A sua crítica foi tão simples, que parece quase inconveniente recordá-la: eram os tempos em que um “bom católico”, depositário de palavras escritas, deitou ao Tibre a estátua da Pacha Mama, a Mãe Terra, que estava na igreja Transpontina. É necessário algo mais para dizer de que crítica se tratava? Era a voz da cristandade normativa, aquela para quem a cristandade é ocidental, romana e, dessa forma, no seu estilo e no seu hábito quer impor-se a todo o mundo, a todos os povos, a todas as periferias. Tal crítica é o triunfo do institucional sobre o espiritual, a visão exatamente oposta à do visionário Pasolini, que ama o espiritual e não se dobra a nenhum conformismo. Infelizmente Pasolini não assistiu à repetição do gesto de Paulo VI feita por Francisco. Mas nesse longínquo 1974 ele escreveu no Corriere della Sera:
Talvez algum leitor tenha ficado impressionado com uma fotografia do papa Paulo VI colocando na cabeça uma coroa de penas Sioux, rodeado por um grupinho de Pele-vermelhas com vestidos tradicionais: um quadrinho folclórico extremamente embaraçante, tanto mais a atmosfera parecia familiar e indulgente. Não sei o que terá inspirado Paulo VI a pôr na cabeça essa coroa de penas e a posar para o fotógrafo. Mas: não existe incoerência. Pelo contrário, no caso desta fotografia de Paulo VI, pode-se falar de uma atitude particularmente coerente com a ideologia, consciente ou inconsciente, que guia os atos e os gestos humanos, fazendo deles “destino” ou “história”. Neste particular, “destino” de Paulo VI e “história” da Igreja. Nos mesmos dias em que Paulo VI se fazia fotografar naquela atitude, sobre a qual “calar-se é bom” (mas não por hipocrisia, antes por respeito humano), ele havia efetivamente pronunciado um discurso que eu não hesitaria, com a devida solenidade, a declarar histórico. E não me refiro à história recente ou, ainda menos, à atualidade. Isto é tão verdade que esse discurso de Paulo VI nem sequer fez notícia, como sói dizer-se: li nos jornais relatos lacónicos e evasivos, relegados para o fim da página. Dizendo que o discursozinho de Paulo VI é histórico, quero referir-me ao inteiro curso da história da Igreja católica, isto é, da história humana (eurocêntrica e culturocêntrica, pelo menos). Paulo VI admitiu explicitamente que a Igreja foi superada pelo mundo; que o papel da Igreja se tornou, de repente, incerto e supérfluo; que o Poder real já não precisa da Igreja e abandona-a, portanto, a si mesma; que os problemas sociais são resolvidos numa sociedade em que a Igreja já não tem prestígio; que já não existe o problema dos “pobres”, isto é, o principal problema da Igreja, etc. Resumi os conceitos de Paulo VI com palavras minhas: isto é, com palavras que uso já há muito tempo para dizer estas coisas. Mas o sentido do discurso de Paulo VI é exatamente aquele que resumi: e as próprias palavras não são, de facto, assim tão diferentes.
Mas afinal sobre quem é que Pasolini escrevia em 1974: sobre Paulo VI e la Igreja ou sobre Francisco e a Igreja? Via aquilo que estava a acontecer ou aquilo que está acontecendo mais de cinquenta anos depois? Para responder, devemos regressar ao volume de que estamos a falar, onde Pasolini é citado desta maneira:
Numa perspetiva radical, talvez utopística, ou, é o caso de o dizer, milenarística, é, portanto, claro aquilo que a Igreja deveria fazer, para evitar um fim inglório. Deveria passar à oposição. E, para passar à oposição, deveria, antes de mais, negar-se a si mesma. Deveria passar à oposição contra um poder que a abandonou tão cinicamente, projetando, sem cerimónias, reduzi-la a puro folclore. Deveria negar-se a si mesma, para reconquistar os fiéis (ou aqueles que sentem uma “nova” necessidade de fé) que, exatamente por ser ela o que é, a abandonaram. Retomando uma luta que faz parte, aliás, das suas tradições (a luta do Papado contra o Império), mas não pela conquista do poder, a Igreja poderia ser o guia, grandioso mas não autoritário, de todos aqueles que recusam (fala um marxista, exatamente por ser marxista) o novo poder consumista, que é completamente irreligioso; totalitário; violento; falsamente tolerante, pelo contrário, mais repressivo que nunca; corruptor; degradante (como nunca, hoje, faz sentido a afirmação de Marx, de que o capital transforma a dignidade humana numa moeda de troca).

Demasiado fácil, demasiado cómodo, recordar que Francisco escreveu “esta economia mata”. Ao escrevê-lo recordou-nos outras agressões contra o homem, tantas outras agressões, porém, como autêntico não-conformista, fala com a palavra oral, não escrita, e vê hoje esta economia e que esta economia mata. Traz, portanto, a Igreja para a oposição do poder consumista. Não a leva a aliar-se com os outros poderes, mas leva-a a fazer-se amiga de outra ideologia, escolhe o percurso da santidade, como Pasolini, não o clerical. A oposição, a hostilidade de Francisco pelo clericalismo é conhecida, sublinhou-a tantas vezes. Não “a um clericalismo”, mas ao confisco da Igreja porque a sua é, poder-se-ia dizer, “uma Igreja oral”, isto é, Igreja dos batizados, todos. O todo, diz Francisco, é superior à parte. É aqui que o volume se faz surpreendente, quase perigoso. Vejamos as linhas que seguem imediatamente a citação anterior:
Num tal contexto, o que poderia fazer no guião do seu São Paulo, se não delinear na figura de um único Paulo, o Paulo santo, aquele da fulguração damascena, e o Paulo ex fariseu e fundador da Igreja católica?
Uma interrupção para dizer que o Paulo de cada conto é aquele que cai do cavalo, mas é p outro aquele que se indica.
Retomando o texto:
Pasolini é claríssimo a este propósito, na conversa que tem com Gideon Bachmann, uns dias antes do citado artigo no Corriere, a 13 de setembro de 1974:
O filme é uma coisa violentíssima contra a Igreja e contra o Vaticano, porque faço um São Paulo duplo, isto é, esquizofrénico, claramente dissociado em dois: um é o santo (…) o outro, pelo contrário, é o padre, ex-fariseu, que recupera as suas situações culturais anteriores e que será o fundador da Igreja. Como tal condeno-o; como místico está bem, é uma experiência mística como outra qualquer, respeitável, não a julgo, mas condeno-o violentamente como fundador da Igreja, com todos os elementos negativos da Igreja já prontos: a fobia sexual, o antifeminismo, a organização, as coletas, o triunfalismo, o moralismo. Enfim, todas as coisas que fizeram o mal da Igreja estão já presentes nele. (De Giusti 1979, pp. 156-157)”
No seu artigo sobre Paulo VI Pasolini afirma que nesse “discursozinho” o Papa foi sincero, por uma vez livre da mediação com as razões diplomáticas da Secretaria de Estado do Vaticano para exprimir a sua visão livre, autêntica. É aquilo que os papas devem fazer, não podem não fazer, ao contrário de Pasolini. Mas já nessa mediação com a “verdade oficial” há a semente “santa”, espiritual, mística, visionária. Não há estagnação, mas força para a oposição. Pasolini vê, pois, essa dualidade que parece própria da Igreja católica, igreja de Pedro, mas também do dividido Paulo, Igreja oral mas também Igreja escrita, pelo menos pelo Concílio.
Esta dualidade encontra-a em Paulo Pasolini, fazendo dela o elemento de grande fascínio da sua personalidade. E, de facto, o volume cita a intuição profunda do estudo de Giuliani, que afirma:
Delineada com clareza a pars destruens do texto, no percurso inverso a caminho da fundação da Igreja como instituição, futura cúmplice e detentora do poder temporal, denunciados ab ovo os momentos que causaram a atualidade depreciada por Pasolini e condenado sem atenuantes o momento do “organizar”, é porém possível encontrar uma pars construens que Pasolini extratextualmente sugere através da figura do Santo e da sua “palavra” mais duradoura: trata-se daquela que se encontra na caridade, conceito-chave da reflexão pasoliniana sobre a Igreja e, simultaneamente, marca principal da pregação paulina. (Giuliani 2009, p.122)
Esta caridade é o cerne da questão levantada por este estudo.

Tradução: Luís Belas

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